A Arte Durante a Guerra: Como Ilustradores Ucranianos Espalham a Verdade e Cooperam com a Mídia Global (Parte 1)
A guerra que está acontecendo na Ucrânia, que teve seu início há mais de um mês, uniu o povo e encorajou todos a fazerem o seu melhor em nome da vitória. Atualmente, graças ao alcance da arte, os criativos podem compartilhar mensagens extremamente importantes para pessoas do mundo todo. Eles mostram a realidade sobre como os eventos estão aumentando na Ucrânia, assim como transmitem seus sentimentos através das obras de arte.
Falamos com artistas ucranianos que continuam criando e ilustrando sobre a agressão da Rússia e a resistência heróica da Ucrânia. Perguntamos como suas vidas mudaram desde que a guerra começou a se intensificar, onde buscaram inspiração, quais mensagens eles compartilharam e como estão vendo o papel dos criadores hoje em dia.
Parte 1
Anna Sarvira (@anna.sarvira)
Desde o dia 24 de fevereiro, estou vivendo em uma realidade paralela, onde quase nada do que eu tinha restou. Meus sonhos acabaram se tornando irrelevantes. Perdi meu emprego, perdi a possibilidade de ver meus amigos e familiares – quase todos os meus meios de apoio desapareceram. O que realmente se tornou importante são os meus mais próximos. Porém, eu não consigo abraçá-los. Em vez disso, fico perguntando todos os dias se estão seguros.
Os dois sentimentos mais fortes, medo e ódio, são emoções que nunca tive a chance de experimentar por completo até o início da guerra.
Atualmente, estou fora do meu país e tento ajudar o máximo que posso: eu e o clube Pictoric, organizamos exposições de ilustrações sobre a guerra e tentamos arrecadar fundos para ajudar a Ucrânia. Sempre existe a sensação de que não está sendo o suficiente, mas quando isso acontece, me dou um puxão de orelha, pois não é hora de jogar tudo pra cima.
Durante a primeira semana de guerra, não consegui ter nenhuma ideia, não me vinha nada. Desenhar parecia a coisa mais inútil do mundo naquele momento. Tive que me recompor. Depois dos primeiros dias de incompreensão e incapacidade de acreditar neste novo mundo, eu estava tomada pela raiva. E agora, é ela que alimenta o meu trabalho. Não existe nenhuma inspiração aqui, e sim notícias horríveis e auto-reflexão, que despertam o desejo de mostrar a verdadeira face da Rússia para o mundo todo.
Geralmente, o meu público é estrangeiro. Eu tento explicar coisas que são facilmente compreensíveis para os ucranianos: sobre a Rússia, Putin e as pessoas que estão apoiando tudo isso. Ou sobre por que se render não é uma opção para a Ucrânia (e, de fato, para o mundo todo). Tenho certeza que tudo isso é importante. Muitas vezes também não conhecemos o contexto político e histórico de outros países por inteiro. Por esse motivo é preciso explicar. E geralmente, escrevo uma legenda para uma ilustração em inglês, embora não me considere blogueira ou escritora.
A raiva que alimenta meu trabalho. Não existe nenhuma inspiração aqui, e sim notícias horríveis e auto-reflexão, que despertam o desejo de mostrar a verdadeira face da Rússia para o mundo todo.
Atualmente, o papel dos criadores é fazer barulho, ser compreensível e conciso. Algumas mensagens são mais fáceis de transmitir por meio do simbolismo da arte. Além disso, é importante escolher para qual público você está trabalhando e qual mensagem você está compartilhando. Por exemplo, eu não consigo entender ilustrações com pombas da paz e coração; “paz na Ucrânia” nas mentes de ucranianos pode ser muito diferente do que na mente dos estrangeiros. Quero dizer – a maneira como essa paz virá.
Aqui está uma coisa engraçada: acho que a minha ilustração mais poderosa é a Pomba da Paz. Uma pomba crucificada amarrada com a bandeira da Rússia e a letra Z recortada em seu peito. É assim que se parece a “paz” russa. Fiz essa ilustração depois que vários estrangeiros me perguntaram o porquê da Ucrânia não se render, já que pouparia tantas vidas. Eu tive que dizer a eles como está a situação na Rússia em relação aos direitos humanos, ao que eles fazem com os prisioneiros e aqueles que são contra o regime e defendem o direito à liberdade. E que para a Ucrânia, se render significaria eliminar todos aqueles que são contra a Rússia. Significaria tortura e morte, a destruição da nação, identidade e língua ucraniana. A pomba da paz nas mãos da Rússia está exatamente assim: morta.
Maria Kinovich (@marikinoo)
Acredito que nenhuma palavra pode expressar o quanto a guerra mudou minha vida drasticamente. Ninguém nos preparou para esse tipo de evento, é impossível se preparar para isso. Na minha visão, essa situação se assemelha a um meteorito caído, e uma perda total de fé e justiça. Eu precisei sair de casa, deixar minha vida normal. No entanto, o mais difícil é o que está acontecendo no país inteiro: como eles apagam cidades impiedosamente, como eles massacram civis. Isso vai além da minha compreensão, e ainda não acredito que isso está acontecendo conosco.
A principal missão dos artistas atualmente é trabalhar em benefício da Ucrânia no campo de batalha da informação. Nossas fotos têm um grande poder: tratam de temas relevantes e possuem a capacidade de mudar a opinião de alguém.
Acredito que é meu trabalho continuar criando. Nesse momento, inúmeras pessoas estão experienciando coisas que ninguém deveria. E por conta deles, não posso parar. Estou com muita raiva dentro de mim, e de certa forma, isso me impulsiona.
Illustration for The New Statesman
Todos os trabalhos que faço são muito pessoais, consigo desenhar apenas coisas que eu mesma vivenciei. Mas nesta guerra de informação, tomei a decisão de focar em mostrar como o povo ucraniano é corajoso e forte. Outra mensagem importante a espalhar é que não estamos seguros. Existem pessoas maravilhosas de outros países que estão sempre compartilhando palavras relacionadas à segurança. E tento sempre ressaltar que isso não é possível na Ucrânia neste momento. Eu imagino que seja difícil compreender, mas foi exatamente essa segurança que tiraram de todos nós. É por esse motivo que a melhor opção é enviar mensagens de “fique forte” para os ucranianos, ao invés de “fique seguro”.
A principal missão dos artistas atualmente é trabalhar em benefício da Ucrânia no campo de batalha da informação. Nossas fotos têm um grande poder: tratam de temas relevantes e possuem a capacidade de mudar a opinião de alguém. E somente nós podemos dizer ao mundo como é – viver durante a guerra e como é ser ucraniano. Além do mais, o mundo inteiro está com a atenção focada em nós, para podermos falar sobre as coisas que têm provocado tanta dor ao longo da história.
Part of the comic strip for The Economist
No sexto dia de guerra consegui um trabalho que provou ser o mais difícil para mim. É uma ilustração para a revista The New Statesman. É sobre como estávamos saindo de Kiev. Eu já tive vários sonhos sobre morar/trabalhar em outro lugar, mas em nenhum momento quis ser uma refugiada.
Além desse trabalho, houve outro importante para o jornal The Economist. Eu estava receosa em conseguir criar uma história em quadrinhos, já que trabalho raramente com esse gênero. Então, juntei três das ideias mais preciosas que tenho agora: que estou tentando, mas ainda não consigo entender como viver em guerra; que na Ucrânia não existe lugar seguro; e que desejo que possamos vencer e reconstruir tudo o que foi destruído.
Zukentiy Gorobyov (@zukentiy.gorobyov)
Após a ocupação de Lugansk em 2014, minha vida mudou; Eu venho de lá e permaneço registrado como residente. Para ser sincero, eu imaginava uma invasão em grande escala, mas ainda estava chocado com essa ideia. É impossível se preparar para um evento desses.
Creio que as Forças Armadas e de Defesa Territorial da Ucrânia fizeram tudo que puderam pelo nosso país, mas a situação exige a ajuda de todos. Acredito que o campo de batalha intelectual não seja menos importante. Todos estão vendo nossa luta; as informações nos ajudam a demonstrar a consolidação de nossa sociedade no enfrentamento ao agressor. Eu tenho a esperança de que meus trabalhos visuais apoiem outras pessoas, inspirando-as a lutar e resistir ainda mais.
Todos precisam fazer o que podem agora. Alguns artistas estão defendendo nossa terra, alguns são voluntários e outros estão fazendo cartazes de apoio.
Possuo dois tipos de mensagens: a primeira é mais intelectual (referente à esquizofrenia da propaganda do Kremlin e slogans criados por propagandistas, políticos e diplomatas russos). A segunda contém um conteúdo agressivo em relação à guerra. O inimigo precisa entender que neste território, eles não conseguirão nada além do fracasso (moral e físico).
Todos precisam fazer o que podem agora. Alguns artistas estão defendendo nossa terra, alguns são voluntários, outros estão fazendo cartazes de apoio e existem aqueles que ainda estão em choque e não sabem o que fazer. Não existe uma resposta certa para isso. Mas ao meu ver, é importante continuar suas práticas artísticas, sejam elas sobre a guerra ou não. A questão é não parar e não se perder em um bloqueio mental criativo. O papel principal da arte atualmente é desenvolver a identidade cultural, sendo ela a mais colorida possível.
á faz um tempo que eu fui a uma palestra budista, e ouvi que o mal mais mortal não pode existir: ele irá se autodestruir. Foi assim que tive a ideia para o meu cartaz: kremlin-crocodilo que se destrói. Há muito tempo, decidi desenhar um super-herói ucraniano. Fiz vários esboços, mas nunca cheguei a terminá-los. Depois que a guerra se iniciou, comecei a olhar através deles. Percebi que era hora de fazer os meus esboços virarem cartazes. E foi isso que eu fiz.
Natalia (@_lli_la_)
Durante a primeira semana, não consegui fazer nada, nem pensar direito. Eu estava apenas vendo as notícias e chorando sem parar com as fotos que tinha visto. De 24 de fevereiro até os dias atuais (16 de março), tenho vivido em uma névoa. É difícil ficar vendo o meu país sofrer tanto.
Antes da guerra, eu sempre tinha um pincel ou uma caneta em mãos. Desde a invasão, tem sido difícil para mim desenhar ou pintar. Não consegui criar nada durante dias, especialmente com tintas. Para mim, a pintura é algo tátil, eu sinto a pintura e ela me sente, por isso gosto de pintar com os dedos.
Estou longe das pinturas desde o início da guerra. Voltarei a pintar assim que essa guerra horrível acabar. Acredito que não irá demorar muito. Me recompus e comecei a desenhar em um tablet: mulheres ucranianas. Li diversas informações sobre mulheres fortes que ajudam na linha de frente doméstica ou lutam junto com homens nas forças armadas da Ucrânia.
Dedico minhas ilustrações às mulheres fortes que estão ajudando em casa e orando pelos seus homens que estão no campo de batalha; aqueles que estão defendendo a sua e a nossa Ucrânia.
Muitas vezes as mulheres são comparadas a uma natureza mais frágil. Mas sabemos que isso não é verdade. Por trás dos ombros ternos de uma mulher existe um grande poder. O poder do amor, calor, paciência e sabedoria. Na série “My Ukrainian women” (Minhas mulheres ucranianas), não mostro rostos (já que muitas vezes uma mulher é julgada pela sua aparência, e isso é vergonhoso). Porém, ainda somos capazes de ler suas emoções muito bem. É por isso que eu dedico minhas ilustrações às mulheres fortes que estão ajudando em casa e orando pelos seus homens que estão no campo de batalha; aqueles que estão defendendo a sua e a nossa Ucrânia.
Nos dias atuais, um artista tem um papel muito importante. Primeiramente, cada artista registra nossa história da maneira como a sente e a vê. É como uma fotografia de uma cidade em ruínas, só que é a sua própria cidade – dentro de você. Em segundo lugar, muitos artistas ajudam as Forças Armadas da Ucrânia vendendo suas criações. Em terceiro lugar, durante a guerra, houve uma tendência nas redes sociais de compartilhar ilustrações que tocassem as pessoas (eu vi isso pessoalmente). Na minha opinião, isso promove o respeito pela arte e as riquezas espirituais nas pessoas.
Este é o primeiro trabalho da minha série “My Ukrainian women” (Minhas mulheres ucranianas). Ele me remete a obra “Moça com brinco de pérola” de Johannes Vermeer, embora eu não tenha planejado isso. Depois que finalizei o trabalho, olhei para o resultado e comecei a chorar; isso desencadeou minha dor. Não mostrei o rosto dela, embora consigo vê-lo.